Leitores de Tex
Tex é um fenômeno editorial brasileiro. Detentor de cerca de uma dezena de títulos regulares, com as mais diversas periodicidades (mensal, bimensal, bimestral, anual...), cujas numerações são seguidas à risca pelas diversas editoras que publicaram e publicam seu material, chega a ser uma deliciosa indecência com o bolso dos fiéis colecionadores. Posso estar enganado - aí caberia um estudo - mas creio que esta tribo adotou numerosos leitores de livros de bolso que inundavam as bancas de revistas em meados das décadas de 1980 e 90, além de fãs de John Wayne e Cia. É inacreditável saber que tão rico retrato do oeste dos EUA é oferecido por uma equipe de criadores do outro lado do oceano, Itália, cuja origem remonta ao saudoso Luigi Bonelli (1908-2001). É empolgante ver Tex, Carson, Kid e Jack Tigre juntos.
Leitores de mangá
A tribo mais identificável e distinguível das outras é a dos leitores de mangá. É assombrosa sua participação no mercado pop brasileiro; arrisco a dizer que sua “militância” rivaliza com a numerosa população gamer. É uma alegria ver que agora as editoras conseguem compreender o fenômeno e não tratam os otakus como um público de nicho como vários outros. Crescendo a olhos vistos, infelizmente esta tribo ainda tinha que se submeter à aquisição de material mal editado, mutilado ou diferente do original ou recorrer aos importados em busca de material de qualidade. No entanto o cenário atual é favorável e otimista, com cada vez mais editoras competentes se debruçando sobre a oferta deste material. Mas ainda falta muita coisa boa a ser publicada no Brasil. E, por favor, editoras, nada de página espelhada, ok?
Leitores de Disney
Taí uma tribo inusitada: a de leitores adultos de Disney. Existem aos montes, e sabem de cor qual a primeira aparição do Peninha e a árvore genealógica da família Pato. Não à toa, este universo contempla as publicações de maior numeração ever, como Pato Donald e Zé Carioca que chegaram a mais de 2500 edições cada, fora inumeráveis títulos correlatos. Há um esboço de explicação parcial para esta, vamos dizer, idolatria: certas histórias se fincam na memória da memória da criança e as acompanham por toda a vida; vejo por mim mesmo, lembro de uma dúzia de histórias da Disney que li na minha terceira infância, e cujas revistas se perderam no emaranhado da vida. Algumas resgatei em compras pela internet, outras só recordo um fiapo de história tão indefinido que não serve nem para pedir ajuda na localização. Sei, é triste...
Leitores de super-herói
Os famigerados leitores de super-heróis; não sei se comporiam uma tribo, tão numerosos que são. É a comunidade mais dispersa e resiliente: só encontro estas definições para justificar o consumo regular de tanto material questionável a fim de encontrar uma pérola aqui, outra ali. Era uma tribo claramente em declínio no final do século passado, como toda tribo viria a ser se apenas se alimentasse desta espécie de fast-food de nanquim, até que Hollywood, num raro gesto de grandeza e sensibilidade ambiental, tratou de revitalizar esse povo com uma avalanche de filmes. Um gesto louvável, se com isso não tivesse canibalizado uma tribo em franca ascensão, a dos leitores de Vertigo, cujos hábitos alimentares eram muito mais refinados e até hoje têm iguarias requentadas para consumo em forma de diferentes embalagens encadernados.
Leitores de Mad
Por fim, e como não podia deixar de ter, uma tribo extinta no Brasil, aliás a tribo mais guerreira e resistente possível: a de leitores de Mad. Com poucos membros, composta com o passar do tempo por órfãos da editora Circo e quadrinhos adultos e alternativos em geral, esta tribo conseguiu manter em circulação a anárquica publicação por inacreditáveis quarenta e dois anos (a partir de 1974, com hiatos de lançamento aqui e ali), encontrando seu fim na toda poderosa editora Panini (pô, Panini!) em meados deste ano. Mad é um estudo de caso, uma espécie de Charlie Hebdo mais comportada, responsável pela “educação” e formação cultural de milhares de humoristas pelo mundo afora. Algumas capas de Mad foram verdadeiras obras de arte brasileiras, conquistando cadeira cativa no imaginário da cena underground.
Milo Manara, Paolo Serpieri, Guido Crepax, o nosso Carlos Zéfiro, só pra citar alguns nomes, foram os responsáveis por fazer muito brucutu adulto ler quadrinho. Suas obras, de reconhecido teor educativo, nos trazem valiosas lições de anatomia de personagens, uma deficiência visível em muitos desenhistas. Os membros desta tribo de leitores têm como ideal de mulher a Valentina de Crepax ou as mulheres de Manara, e seus sonhos de consumo envolvem namorar alguém com a bunda de Druuna ou os peitos da Poderosa. Quando entediados, são vistos folheando mangás nas bancas à caça de um “fan service” casual ou um hentai fora do plástico. Têm em sua coleção várias revistas de Robert Crumb e visitam constantemente o site de Marcatti em busca de novidades. Sei de tudo isso porque pesquisei...
Leitores de Vertigo
Karen Berger, quando deixou a Vertigo há alguns anos, deixou inconsoláveis e quase órfãos milhões de leitores em todo o mundo, que tinham se habituado a duas décadas de ótimos e inteligentes títulos editados por ela e os viam como uma alternativa e porto seguro para o mar de mediocridade que tinha se tornado os quadrinhos mainstream. Os quadrinhos da Vertigo são o sonho de todo leitor: sem censura, anárquicos, cerebrais, sem as aporrinhações que se tornaram marca registrada da Marvel e DC, como mega-sagas, retcons e ressuscitações de personagens. Sua saída, motivada por desmandos hierárquicos e a mão pesada dos produtores de cinema, foi muito sentida, mas deixou a prova de que é possível sim fazer quadrinho complexo e vendável, que não abusa da inteligência do leitor e com tramas que rivalizam com best-sellers da literatura.
Leitores de Star Wars
Os membros dessa tribo acompanham com admirável fidelidade cada produto relacionado à saga de George Lucas (ou da Disney, pois há algum tempo o George não apita em nada na franquia), e os quadrinhos não poderiam ficar de fora. Os títulos atuais estão, nos últimos anos, com presença assegurada em listas de quadrinhos mais vendidos - consta que o primeiro número de um recente título vendeu mais de um milhão de exemplares só nos EUA. Este é um público formado predominantemente por fãs dos filmes e/ou praticantes de cosplay, com as caracterizações de Darth Vader, Princesa Léia, Luke Skywalker e seus onipresentes sabres de luz sendo figurinhas recorrentes em encontros e convenções.
Leitores de Asterix
Asterix é uma deliciosa aula de história em quadrinhos, e eu disse “aula de História”. Surpreende como uma trama passada há 50 anos antes de Cristo, no norte da antiga Gália, repleto de referências históricas e com um humor tipicamente francês, que mescla minúcias políticas, trocadilhos linguísticos e metalinguagem, foi amplamente abraçada por leitores de todo o mundo durante os lançamentos dos quase quarenta álbuns lançados no decorrer de sessenta anos, gerando um assombroso número de 350 milhões de exemplares vendidos. Os leitores de Asterix por vezes têm que se deter em um quadro a fim de absorver a ironia ou a complexidade do que se passa em cenas aparentemente inocentes e casuais, na maioria das vezes envolvendo romanos e figuras históricas como César e Cleópatra.
Inquestionável patrimônio nacional, as histórias da Turma da Mônica são publicadas ininterruptamente desde 1959 (a partir das tiras de Bidu e Franjinha), com dezenas de títulos lotando as bancas de revistas e bibliotecas. Produzidas em escala industrial e sob o olhar vigilante do seu criador, Mauricio de Sousa, as revistas se transformaram em recurso de iniciação à leitura para milhões de crianças Brasil afora (não só em português, como também em outras línguas - exemplo da revista Monica's Gang que foi lançada regularmente no Brasil). Nos últimos anos, o produto foi turbinado com versões em mangá e com publicações em formato graphic novel produzidas por talentosos artistas nacionais.
Noobs
Migrado das salas de cinema, este público quer conhecer melhor os personagens vistos nas telonas, porém sua peregrinação pelos quadrinhos não é perene - não tendo contato com boas histórias atuais, invariavelmente retorna a suas sessões de Netflix, Steam e controles de PS4. Apesar disso, devido a sua incursão pelo mundo dos quadrinhos, sente-se na obrigação de destilar conhecimento em fóruns de comentários e diante dos amigos entusiastas dos heróis apenas pela tela grande, mas acabam passando vergonha frente a conhecedores de quadrinhos. Membros desta tribo são bem vindos, porém precisam de um guia (aquele colega trintão crescido com os quadrinhos dos anos 80 ou a Vertigo dos 90) que os leve ao longo caminho dos bons quadrinhos publicados, pois só assim poderão apreciar plenamente as nuances e intertextos dos roteiros das adaptações cinematográficas.
Leitores de capa dura
O que essa tribo quer é lombada na estante. Quanto mais melhor. E se formar um mosaico de ponta-a-ponta, então... Vou defender a existência deste público, tão responsabilizado por inflacionar o mercado nacional. Se existem colecionadores de tudo, de figurinhas a selos, de action-figures a camisas autografadas de times, relógios de luxo e carros, por que não poderão existir colecionadores de encadernados? Se leem ou não, se são noobs ou nerds endinheirados, o que importa é que mantém a máquina funcionando, gerando produtos que se não podem ser consumidos saídos do forno pela média do consumidor brasileiro, podem ser arrebatados numa promoção maluca da Amazon ou num sebo qualquer.
Leitores de europeus
No vocabulário desta comunidade as palavras álbum, volume e periodicidade têm um significado diferente dos de outras tribos. São leitores acostumados com o estilo linha clara, com a incerteza quanto a data de lançamento do próximo número, com a falta de oferta nacional de bandas desenhadas. É o tipo de leitor que sabe o pseudônimo de Jean Giraud. Que acompanha nosso artista brasileiro infiltrado nesse meio, o Leo (Aldebaran). Do tipo que evita que uma mãe presenteie seu filho com Titeuf. (Depois fica arrependido). Não lê Tex, lê Lucky Luke, não leu Vampirella, leu Barbarella. É capaz de apontar a influência europeia de cada quadrinho seu: fãs de Star Wars, corram! Valérian.
Leitores de tirinhas
Um público mais adulto, alfabetizado em quadrinhos através das antigas tirinhas dos cadernos de jornais, localizadas em meio a previsões do horóscopo, dicas de culinária e passatempos de xadrez. Conhece Pafúncio, Hagar, Trixie, achava Laerte o cara, agora acha a cara da tia, e sabe a diferença entre charge, tira e cartum. Sempre que encontra compra obras do Calvin, Garfield e Recruta Zero. Já tentou criar sua própria tira na internet, mas foi desestimulado por seu traço simplório. Atualmente, com a derrocada de seu hobby nas cada vez mais decadentes páginas de jornais, se contenta com o material digital, pulando de site em site até encontrar um Malvados, Willtirando ou Linha do Trem. Ainda tem tirinhas recortadas de velhos jornais, e lembra nostálgico de quanto espaço dedicavam a este pedaço da nona arte.
Leitores de velharia
Parou de ler quadrinhos regularmente quando a Editora Abril relançou os títulos Marvel e DC pela linha Premium e depois não voltou mais. Apesar disso, ainda tem umas caixas de formatinhos diversos e quando bate um saudosismo se vê relendo as seções de cartas dos leitores e notas de rodapé do Jotapê. Já tentou ler em formato americano, mas nunca se acostumou com o desenho maior, o papel esquisito e a colorização digital. É capaz de dizer de cor as composições dos mix de cada número da Superamigos e Superaventuras Marvel e reconhece pelo traço cada artista dos anos 80/90. Sempre compara as histórias atuais com as histórias de Frank Miller, Walter Simonson, John Byrne e Chris Claremont. Dinossauro clássico, corrige noobs, desdenha capa-duras e vê com desprezo as adaptações cinematográficas. E, por fim, não entende como Liefeld ficou multimilionário.
[Essa postagem compila textos antigos do site, com pequenas alterações.]
ED
Faltou alguma tribo? Manda sinal de fumaça!
3 comentários:
Fantástico!
Poderíamos citar os...
-LEITORES DE CONAN, que, ao lado dos leitores de Tex, formam a segunda tribo mais fiel dentre todos os fãs de HQS;Pra eles, John Buscema é o Deus Supremo e Arnold Schwarznegger fez um Conan muito melhor que o Jason Momoa, e, mesmo comprando os Ominibus do personagem, não se desfazem, nem a pau, de suas magníficas coleções de A Espada Selvagem De Conan;
-LEITORES DE QUADRINHOS UNDERGROUND/ALTERNATIVOS: Marvel? DC? Super-Heróis e HQs hypadas?? Pode esquecer! Essa classe de leitores só se interessa por HQs de fora do "esquemão", desde os clássicos, como os comix de Robert Crumb (Fritz The Cat e Mr.Natural),Gilbert Shelton (The Freak Brothers),os irmãos Jaime & Gilbert Hernandez(Love & Rockets) e Daniel Clowes (Ghost World, Como Uma Luva De Veludo Moldada Em Ferro),até novidades, como Jamie Doucet(Diário De Nova York),Seth (A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar)e aqueles autores, praticamente desconhecidos do grande público.
-LEITORES DE SCANS: É uma tribo dividida em várias facções: há aqueles que, forçados pelos altos preços das HQs, desistiu de comprar, e,agora, passam o dia caçando HQs na rede, seja para baixar, seja para ler online. há um grupo, dentre eles, que o faz por questões ecológicas; outro, que mesmo baixando ou lendo online, quando gosta da história,decide adquirir a edição física; e, por último, tem aquele grupo que gosta de procurar scans de obras inéditas e/ou desconhecidas do grande público brasileiro, sejam elas recentes ou antigas.
Sensacional, Dyel! Parece até que eu escrevi rs
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